Tuesday, July 18, 2006

crônica de inverno


Um paradoxo bem conhecido da nossa era é que todas as modernas invenções que nos fazem, em princípio, "ganhar" tempo, não conseguem deter a marcha crescente da nossa pressa. Uns trabalham cada vez mais para manter o emprego, enquanto doutro (e mais perverso) lado, outros tem cada vez mais trabalho para encontrar um emprego. Pois comigo se passou recentemente um fato, nada extraordinário, mas que me levou a refletir no assunto, arriscando-me a formular uma "tese-de-mesa-de-bar".
Era o dia do meu aniversário. Fui nadar no clube, em perfeito estado de saúde para a minha meia-idade. Ao voltar para o carro, que estacionei na rua, fiquei observando uma senhora, um tanto idosa, de aspecto humilde, que tinha sérias dificuldades de locomoção. O aclive não era acentuado, mas ela caminhava a passos lentíssimos. Não teria carro, ou quem o dirigisse, ou dinheiro para o táxi, ou não havia ônibus para o trajeto que ela necessitava fazer. Imaginei-me, num futuro não muito distante, naquela situação. Devia oferecer-lhe uma carona? Mas não, estava para variar atrasado. Deixei-a e fui cuidar da vida.
Exatos três dias depois, eu estava numa festa, no colégio das crianças. Sem pensar, juntei-me a um grupo que jogava futebol, na cancha de cimento. Eramos três adultos, os demais crianças, nenhuma com mais de 10 anos, acho. Em cinco minutos, fiz um gol (!), substituí o goleiro para descansar e... arrumei um doloroso estiramento na perna esquerda. Procurado o atendimento médico, tomei uma tala de gesso e quatro dias de repouso. Mais tarde, vinte sessões de fisioterapia.
Foi castigo? Não importa. As obrigações do dia-a-dia não me permitiram ficar em casa os quatro dias inteiros, sem andar, e mesmo os seguintes, durante os quais eu tive de me locomover a pé em velocidade apenas um pouco superior à daquela senhora anônima, de quem agora me lembrava com freqüência. Passando nas mesmas ruas que eu percorria todos os dias com o pensamento no relógio e nas obrigações que me esperavam em casa ou no trabalho, comecei agora a perceber coisas que antes não via.
Um passeio esburacado e cheio de excrementos caninos; as revistas expondo na banca as últimas fofocas dos astros; o cheiro exalado pelo "acampamento" dos sem-teto, numa esquina movimentada; a fachada em ruínas de um sobrado outrora cheio de vida, aguardando para breve sua substituição por um moderno (e bem alto) edifício; paradas de ônibus transformadas em pequenos out-door para a prefeitura arrecadar uns trocados, em troca de infernizar a vida do pedestre; pixações que ninguém entende emporcalhando monumentos (alguns destes ninguém entende também); a expressão das pessoas postadas numa fila, ou numa mesa de bar; em suma: poucas belezas ocultas num mar de feiúra.
Qual a tese, então? Ah, sim, a de que só suportamos tanta feiúra, nós que habitamos tal cidade, porque passamos por ela correndo. Logo que chegamos à idade adulta, o que mais queremos é um carro ou moto, para podermos andar rápido. Ou então, alguma substância que nos dê sensação parecida. (Ou as duas coisas juntas, mas aí o negócio começa a ficar muito perigoso.) E assim sobrevivemos.
Se de uma hora pra outra nossos velozes meios de transporte sofressem um colapso, isto nos obrigaria a embelezar nossas cidades? Poderíamos assim, como cantou Beto Guedes, "encontrar o coração do planeta/ e mandar parar / pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas / fazer um minuto de paz / um silêncio que ninguém esquece mais"?
Depois de velhos, já sem muitas preocupações de horário ou compromissos, andando a passo lento, seremos esmagados pela consciência repentina de tanta feiúra? Ou esta depressão vai passar na primavera?

1 Comments:

At 3:53 pm, Blogger Álvaro Santi said...

Belas palavras, amiga. Você me me lembra alguém, sabe?

 

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